domingo, fevereiro 13, 2005

Este texto sobre rastafari saiu em agosto de 2004 na Revista das Religiões, à época uma das "filhas" da Superinteressante. Para facilitar a vida dos que não tiveram acesso à publicação, aqui vai o original - ume pena, porque na revista as ilustrações e o mapa ficaram bem bons. Comentários, correções ou acréscimos relevantes são bem-vindos.

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Misturando Bíblia, alimentação natural, música e ervas,a religião rastafari segue viagem espalhando-se pelo mundo


por Otávio Rodrigues

Há pouco mais de 200 anos, numa pequena e cênica colônia inglesa no Caribe - mas pequena mesmo, caberia dentro de Alagoas! -, os escravos descobriram a Bíblia. E depois de algumas leituras, muitos passaram a acreditar que sua história estava escrita ali, com todas as letras, no Antigo Testamento: o cativeiro, o trabalho de sol a sol, a perseguição, o sofrimento... Identificados com os judeus do Antigo Egito, passaram então a clamar pela volta para casa, África, que acreditavam ser a Terra Prometida. Mas essa é só uma parte da história...
          Hoje, vários descendentes daqueles escravos - estima-se que 10% da massiva população afro-descendente da Jamaica, que hoje é de pouco menos de 3 milhões de almas - continuam aguardando pelo grande êxodo. Seguidores do rastafari, ou rastafarianismo, eles acreditam poder preservar a saúde do corpo e do espírito com hábitos e alimentação naturais, evitam cortar o cabelo e a barba, e como sacramento usam marijuana (cannabis indica). E fazem tudo isso inspirados por preceitos bíblicos. Para completar o cenário de cores quase ficcionais, os rastas cultuam um imperador etíope do século XX - não como um guru, um santo ou mesmo um enviado de Deus, mas Ele mesmo!, em gloriosa encarnação terrena -, a quem chamam de “Jah” (corruptela de Jeovah).
           E antes que se embrulhe este breve resumo para ensaiar um entendimento, temos de acrescentar outro fator importante: a música. Porque num fenômeno sem precedentes na História, uma religião tem um pastor divulgando seu hinário nas paradas de sucesso de todo o mundo. Ou você nunca ouviu falar de Bob Marley?

Descobrindo a Jamaica
Tudo começa com Cristóvão Colombo chegando à Jamaica, em 1494. Ou logo depois, em 1509, com o primeiro navio negreiro. Ou na coroação de Hailé Selassié na Etiópia, em 1930. Enfim, há várias portas de entrada para o mistério do rastafari, e elas invariavelmente nos levam à Bíblia, misturando os capítulos.
          Parece bom chegarmos como Colombo, “descobrindo” a Jamaica. Com uma área de 10 991 km2, praias em todo seu entorno e uma cadeia de montanhas na porção interiorana, a ilha está a cerca de 100 quilômetros ao sul de Cuba - ou Hispaniola, como se dizia naquele tempo. Lugar quente, muito úmido, a Jamaica tinha vocação para o plantio da cana-de-açúcar. Era habitada pelos arauaques, ou o que sobrou deles depois das sanguinárias investidas dos índios caribes, famosos pelo apetite por carne humana. Não demorou para que os espanhóis desistissem de escravizá-los: para evitar a submissão, os arauaques preferiam jogar-se das encostas.
          Chega então o primeiro navio negreiro, e depois outro e outro, trazendo levas de africanos nos ferros, literalmente uns sobre os outros, entre ratos e escorpiões. Um genocídio. E para os sobreviventes, nos anos de chicote que se seguiam, as coisas, como sabemos, não melhoravam. Assim foi no Brasil, assim foi na Jamaica.
Quando os ingleses lá chegaram, em 1655, a ilha estava tão miserável quanto desprotegida - ninguém à época parecia interessado nela, a não ser os piratas, que a usavam como base e esconderijo. A esquadra britânica, com 38 galeões e cerca de 7 mil homens, na verdade pretendia invadir Hispaniola - mas esta sim, os espanhóis defendiam com unhas e dentes. Parece piada, mas os ingleses invadiram a Jamaica para não perder a viagem.

O grande terreiro
O estilo de exploração dos ingleses era avançar e construir igrejas. Não exatamente difundindo o cristianismo entre os escravos, mas para marcar posição. Assim, ao contrário do que ocorreu em grande parte das colônias espanholas e portuguesas, na Jamaica os negros tiveram certa liberdade de culto, já que não havia uma contrapartida forte da igreja católica, nem proibições austeras o bastante para calar o baticum. E isso, como vamos ver, vai fazer toda a diferença no século seguinte.
Porque em 1784, quando o ex-escravo George Liele fundou a primeira igreja batista na Jamaica, a ilha era um grande terreiro. Havia práticas ligadas à magia negra, como a dos obeah men, e também uma variante “do bem”, o myalism. Um dos ritos mais disseminados era a pukummina, que incluía possessões espirituais e toques de atabaques, como bem conhecemos no candomblé, na umbanda e outras religiões afro-brasileiras.
          Diferentemente dos pastores cristãos, Liele apresentou a Bíblia aos negros, agregando nos sermões alguns conhecimentos do Etiopianismo, uma corrente do cristianismo negro norte-americano que reconhece a África, em particular a Etiópia, como um dos berços da civilização cristã. Segundo essa doutrina, as pistas estão na Bíblia: "Príncipes vêm do Egito; a Etiópia corre a estender mãos cheias para Deus.” (Salmos 68:31)
          Logo, instaura-se na Jamaica o que viria a ser chamado de O Grande Revivalismo: o Velho Testamento é adotado nos cultos afro-jamaicanos e os mantras das senzalas adentram as igrejas batistas. Esse sincretismo, além de trazer uma necessária esperança ao povo jamaicano, vai alimentar as lutas libertárias que, entre outras conquistas, levam à abolição da escravatura, consolidada em 1838.
         Deste ponto, partimos para o início do século XX, onde um jovem negro, dono de muita iniciativa e excelente oratória, nos aguarda com mais surpresas...

Um mundo para os africanos
Marcus Mosiah Garvey nasce na baía de St. Ann, norte da Jamaica, em 1887. Aos 14 anos, larga a escola para trabalhar e ajudar a família. Depois, a bordo de navios mercantes, conhece países das américas Central e do Sul, trabalha em gráficas, adquire conhecimentos da prática jornalística, e então vai para Londres, onde permanece entre 1912 e 1914. É bastante provável que, nesse período, tenha tomado contato com as idéias de Booker T. Washington, educador e filósofo negro norte-americano, um dos principais semeadores da ascenção política e social dos afro-descendentes no século XX.
O fato é que, de volta à Jamaica, Garvey chega consciente de que o sofrimento e a falta de liberdade eram um desafio para negros de todo o mundo. Misturando passagens bíblicas com consciência negra - o que, como vimos, tornou-se bem próprio da cultura jamaicana -, num instante seus bordões dão várias vezes a volta na ilha, arrebanhando milhares de simpatizantes. Ele fala em “África para os africanos”. Em 1916, depois de ter fundado a UNIA, Universal Negro Improvement Association (Associação Universal para o Progresso Negro), Garvey muda-se para Nova York, estabelecendo-se no Harlem.
           Em dois meses, já conta com 1 500 seguidores. E em 1921, quando promove e lidera uma convenção internacional em prol da criação de um estado negro universal - líderes de 25 países tomam parte -, estima-se que 4 milhões de pessoas, em todo o mundo, contribuem ou simpatizam com suas idéias, dentre as quais chama atenção a da volta à África.
Com efeito, entre as várias associações, federações trabalhistas e empresas criadas por Marcus Garvey, está a Black Star Line, uma companhia de navegação que pretende realizar o grande êxodo. Claro, a elite americana, incluindo aí boa parte da intelectualidade negra, tratou de encontrar motivos para colocar Garvey atrás das grades.

A sagrada profecia
Em 1927, após dois anos de prisão, Garvey é deportado dos Estados Unidos. De volta à terra natal, ele logo está novamente liderando multidões, talhado que era para discursos firmes e extremamente convincentes. E é nesse momento que lapida uma frase profética, cuja força mudaria a história da Jamaica para sempre: “Olhem para a África. Quando um rei negro for coroado, a redenção estará próxima.”
          Três anos depois, em 1930, Ras Tafari Makkonen (1892-1975) é coroado imperador da Etiópia, adotando o nome Hailé Selassié I e alguns títulos à tradição da igreja cristã etíope: Rei dos Reis, Senhor dos Senhores, Leão Conquistador das Tribos de Judá... Na Jamaica, muita gente acorre à Bíblia e descobre passagens que, inegavelmente, coincidem com as do mundo aqui fora... “Tem no seu manto e na sua coxa um nome inscrito: Rei dos Reis e Senhor dos Senhores.” (Apocalipse 19:16). Para muitos, é a profecia se cumprindo: o redentor negro havia chegado para tirar do Egito os filhos de Israel. É nesse momento, portanto, que finalmente se consagra a religião rastafari. A começar pelo nome, tirado da certidão do imperador: Ras Tafari.
          A boa nova impregna de entusiasmo até os mais céticos, fazendo com que o movimento rastafari (eis um caso em que religião e luta social se confundem) granjeie adeptos em toda a Jamaica e também em outras ilhas do Caribe. Nos anos seguintes, surgiriam os “falsos profetas”, vendendo lugares em navios imaginários, assim como uma imensa fauna de delinqüentes e mercenários, capazes de deixar o cabelo crescer para se passarem por rastas, confundindo tanto suas vítimas quanto a polícia e a opinião pública. Mas que isso não pareça atenuante: por conta de sua aparência incomum e sua condição social, e talvez especialmente devido ao consumo da ganja (cannabis indica), entre outros hábitos um tanto fora de ritmo com os tempos modernos, os rastas continuariam marginalizados pela sociedade jamaicana.

Deliciosa propaganda
Falta então voltar a um elemento importante em toda essa história: a música. Porque a partir da década de 1960, a cultura rastafari seduz toda uma legião de rebeldes, entre eles os que criariam um dos mais importantes movimentos musicais de nossa era - o reggae. E é assim, através da música, e especialmente com a participação de um jovem chamado Robert Nesta Marley (1945-1981), que os rastas ganham o mundo.
          Você, é claro, já ouviu falar de Bob Marley. Mais que isso, é quase certo que conheça várias de suas músicas. Não é para menos: trata-se, segundo o New York Times, do “artista mais influente da segunda metade do século XX”. Uma de suas obras, o disco Exodus, que ele lançou em 1978, foi apontado pela BBC como “o melhor álbum do século”. No mundo inteiro, enfim, entre todas as classes sociais e etnias, esse jamaicano é muitíssimo cultuado como um símbolo de liberdade. Em sua terra natal, então, nem se fala. Mas entre seus iguais, adeptos da religião rastafari, Bob Marley não é apenas um grande artista: ele é também um mensageiro sagrado, responsável pela difusão dos preceitos rastas em todo o mundo. Graças a esse carismático garoto-propaganda que esse conjunto de crenças muito original e digamos, tão próprio do povo de um lugar, ecoou além lindas das praias caribenhas.

A divindade do imperador

Hailé Selassié I nasceu numa ilustre família etíope e foi, sem dúvida, preparado para se tornar um grande dignatário - condição que lhe permitiria, por exemplo, chefiar uma província, gozando dos privilégios garantidos pelo imperador. Mas também sem apelação, Selassié mostrou que possuía inteligência, carisma e habilidade política para ir muito mais longe. E foi.
          Aos 12 anos, comandava uma província. Depois, casou-se com uma das filhas do imperador Menelik II, aproximando-se ainda mais do poder. Aos 24 anos, tornou-se príncipe regente, tomando o lugar de um dos netos do imperador. Em 1923, conseguiu incluir a Etiópia na Liga das Nações. Finalmente, foi coroado em 1930, posição que manteve ao longo de 44 anos.
Selassié assinalou seu nome na história, primeiro defendendo heróicamente seu país durante a invasão das tropas de Mussolini, que ocorreu entre 1935 e 1941, depois nos movimentos pela unidade africana - uma luta que, que de certa forma, continua em curso.
          Então, a pergunta que não quer calar: Hailé Selassié era mesmo divino? Para a maioria dos etíopes, sim, já que ali, tradicionalmente, os imperadores eram tidos como confidentes de Deus. Mas esse entendimento nada tem a ver com a percepção dos jamaicanos, muito mais ousada e incisiva, que é a de acreditar que Selassié era Deus em pessoa. Nesse ponto, chegamos ao limite da discussão terrena - afinal, uma das virtudes da Bíblia, como sabemos, é permitir que façamos nela toda sorte de leituras e interpretações, tal como fazem os rastas, aplicados estudiosos as escrituras.
          Outra questão crucial: Selassié tinha conhecimento ou mesmo se aproveitava da condição divina que lhe foi atribuída pelos rastas? Sim, sabia, mas não dava a isso maior importância, nem sequer posou de Deus quando esteve na Jamaica, em 1966. Na ocasião, inclusive, resistiu a descer do avião quando vislumbrou a turba magnífica que naquele dia invadiu o aeroporto de Kingston, a capital jamaicana. E até que fosse deposto por um golpe, em 1974, não consta que tenha promovido “a retirada dos filhos de Israel das terras do Egito”.


(Legendas/Mapa)

1509
O primeiro navio negreiro chega à Jamaica, trazendo também a cultura africana de tribos como Fon, Akan, Yoruba e Ashanti, entre muitas outras

1916
Marcus Garvey muda-se para Nova York, onde funda diversas associações e empresas “de negros para negros”. Hoje, suas ações são comparadas às de Martin Luther King Jr. e Malcolm X

1927
De volta à Jamaica, Garvey anuncia a vinda de um messias negro, aquele que promoveria a volta dos negros expatriados à sua terra natal, como no êxodo descrito na Bíblia

1930
Hailé Selassié I é coroado na Etiópia, levando os rastas a acreditarem que a profecia havia se cumprido. Mas a viagem para a Terra Prometida nunca aconteceu

1945
Oprimidos pela miséria e desesperança, milhares de jamaicanos mudam-se para a Inglaterra, onde disseminam a religião rasta entre outras comunidades negras de todo o mundo


Mundo rasta

Maconha, cabelos grandes, alimentação natural, música... 
Para os rastas, está tudo na Bíblia

Maconha
A maconha é um sacramento, como a hóstia para os cristãos. Seu consumo, segundo a fé rasta, permite uma interação com Deus. Entre outras passagens: “E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície da toda a terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente: isso vos será para mantimento.” (Genesis, 1:27)

Cabelos
A tam (touca), nas cores da bandeira etíope, protegem as longas tranças. Há registros de que os jamaicanos tenham se inspirado em antigas imagens de guerreiros etíopes, que usavam a carapinha espetada. O mais comum, contudo, é citarem o livro sagrado: “Não cortareis o cabelo em redondo, nem danificareis as extremidades da barba” (Levítico, 19:20)

Música
Até 1930, não havia uma música rasta por excelência. Com a coroação de Selassié e a conseqüente proliferação de adeptos, os rastas naturalmente apropriaram-se de uma tradição rítmica chamada burru, ou nyahbinghi drums, comum nos campos e nas favelas jamaicanas. São esses tambores que, em 1960, misturam-se às orquestras emergentes, originando o ska - o avô do reggae. O propósito da música, como sempre, é inspirado pela Bíblia: “Cantai a Deus, salmodiai o seu nome; exaltai o que cavalga sobre as nuvens. Senhor é o seu nome, exultai diante dele.” (Salmos 68:4)

Comida
Os rastas ortodoxos não consomem carne, derivados de leite ou bebidas alcoólicas, entre vários outros produtos. Preferem viver próximos à natureza e em integração com ela: “Não comereis sangue em qualquer das vossas habitações, quer de aves, quer de gado. Toda pessoa que comer algum sangue será eliminada do seu povo.” (Levítico 7:26-27)

Adoração
Marcus Garvey é Moisés, um enviado de Deus, e Hailé Selassié é não outro senão o Próprio. Este é um dos dogmas mais controversos da fé rastafari e muitos seguidores hoje preferem relevar este aspecto. “Todavia, um dos anciãos me disse: Não chores; eis que o Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu para abrir o livro e os seus sete selos.” (Apocalipse 5:5)

Bíblia
“Um capítulo por dia”: essa é uma das máximas que rege o cotidiano rasta. De fato, seja nas letras das músicas ou mesmo num bate-papo, impossível não ouvirmos uma citação bíblica a cada 10 segundos

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Precioso texto, doc, não conhecia ainda. Um detalhe: li uma vez que Selassié chegou a receber algumas levas de jamaicanos, mas que teria perdido o interesse na repatriação, decepcionado com a indolência e hábitos tabagísticos da turma. Ouviu falar disso?
Grande abraço,
Fernando Abreu

18 de março de 2005 às 17:50  
Blogger João Flavio said...

De fato,Selassie reservou uma área no nordeste da Etiópia(Sheshemanne)para a repatriação dos africanos dispersos,mas o golpe que o deruubou atrapalhou os planos do imperador.

28 de agosto de 2010 às 14:32  

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