sexta-feira, maio 25, 2007

NEWS NEWS Poesia Dub ||||||||||| Lee Perry NEWS NEWS

O blog mantém a tradição, funcionando submarinamente. Nossas desculpas... Mas as coisas continuam rolando, como a maioria dos possíveis freqüentadores desta boca deve saber. Vale registrar mais uma apresentação do combo no Itaú Cultural, em 20 de abril. O show Poesia Dub - cujo disco está em fase de mixagem - trouxe um Celso Borges agulhadíssimo. Novos poemas, como "Paulicéia" e "A Saudade tem Seus Dias Contados" ganharam bases maneiras. Em ambas, largura e muito pé direito para o baixo gordo de Gerson da Conceição. Foi a estréia de Celso Costa, maranhense como CB e GC. Ou seja, três maranhenses e meio, porque eu não sou 100% de lá. : )
Outro registro é o show de Lee Perry, que mereceu texto na Rolling Stone. Lá vai!
Lee Perry ****
Via Funchal, São Paulo
17 de abril de 2007


Para assistir de joelhos

Lee “Scratch” Perry é figura emblemática do reggae. Começou cantando no início dos anos 60, na época do ska, trabalhou no célebre Studio One, de Clement Dodd, e depois formou uma banda com ninguém menos que os irmãos Carlton (bateria) e Aston “Family Man Barrett” (baixo), espinha dorsal dos Wailers nos anos 70. Aliás, foi Perry quem juntou os irmãos Barrett a Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Livingstone, e com eles criou algumas obras memoráveis. Em seu estúdio, o Black Ark, passaram outros grandes nomes da música jamaicana, como Max Romeo, The Congos, Junior Murvin, Junior Byles, The Gladiators, The Heptones e The Jolly Brothers, que até hoje agradecem pela graça recebida. Como se não bastasse, esse senhor de 71 anos e uma honrosa fama de maluco é venerado mundialmente como um dos pais do dub - aquele reggae essencialmente instrumental, com ecos, reverbs e outros efeitos psicodélicos, matéria-prima da música eletrônica moderna. Ora, vamos assistir a esse show de joelhos! O efeito do palco, enorme e escuro, sem qualquer cenografia, combinado ao frenesi das luzes coloridas, faziam do espetáculo algo banal, menor, aquém de sua verdadeira importância. O som estava alto demais, empastelando tudo. E o homem ali, a lenda viva em pessoa, como um Bispo do Rosário, vestindo chapéu de bruxo e sandálias humildes, tudo que fez foi grunhir algumas músicas em inglês incompreensível – seu lado cantor, diga-se, nem de longe é responsável por sua merecida fama. Caminhando lentamente pela frente do palco, mandou cerca de dez músicas, entre elas clássicos como “Jungle Safari”, “Secret Laboratory”, “Roast Fish and Cornbread” e “War in a Babylon”. E antes do segundo baseado, a platéia levou um susto: o show acabara. Sua majestade voltou apenas para entoar “One Drop”, de Bob Marley... então tchau! Pouco diante do conjunto da obra. Mas tudo bem: ele é o cara! Otávio Rodrigues

terça-feira, agosto 16, 2005

"Poesia Dub" abre série de eventos no Itaú Cultural

Nesta quarta, 17 de agosto, abriremos o evento Outros Bárbaros, no Itaú Cultural, São Paulo (Av. Paulista, 149, Sala Itaú Cultural, entrada franca, de 17 a 20 de agosto, sempre a partir das 19h30).

Trata-se de um encontro de poesia e música, no qual se procura explorar os múltiplos caminhos da poesia no mundo da mídia (e vice-versa).

A parceria com o poeta Celso Borges tem sido um diferencial no caminho do Bumba Beat. Esse maranhense de boa pipa equilibra e malabariza as palavras, é cheio de idéias e... ora, entende tudo de música. Com o CB na área, o Bumba Beat participou do Tim Festival (2004), entre outros momentos do balaco.

Para a apresentação desta quarta no Itaú, preparamos cerca de 1h de show, com várias inéditas, incluindo aí uma versão “x-tra dubwise” de “Errare Humanun Est”, de Jorge Ben, e “Bumba Meu Dub”, que tem a participação de Zeca Baleiro.

Engrossando o caldo, teremos o baixista Gerson da Conceição, também maranhense (ô estado...), fundador e líder do grupo Mano Bantu, de gloriosa trajetória, e que recentemente quase derrubou as caixas do Maranhão Reggae Festival com seus supergraves.

Mas o show é light, por assim dizer, já que a palavra está em destaque. Em geral, não apresentamos nossas “poesias dub” em todo canto – bares e festas, por exemplo -, já que ninguém iria escutar/entender nada. Mas no Itaú as condições serão perfeitas.

Difícil não declinar as influências de Linton Kwesi Johnson, Mutabaruka e Oku Onuora, entre outros mestres do estilo conhecido como dub poetry (a tradução literal, aliás, nos pareceu perfeita para o que estamos fazendo).

Outro nome que nos chama sempre a atenção é Serge Gainsbourg, que embora não fosse jamaicano, fumou muito a vida toda, rasqueando como ninguém sobre as mais gruvosas bases da ilha.

Sobraram dúvidas? Mande um post.

quinta-feira, julho 21, 2005

Ragga, o Reino de Shabba

Foi com esse título mesmo que o texto foi publicado na Bizz em março de 93, ao lado de dois outros - um assinado por Camilo Rocha, então na equipe da revista (hoje DJ), e outro de Cláudio Campos (produtor, fundador do IMusica). A idéia de incluí-lo aqui surgiu de uma conversa com os batutas da confraria dubbrasil a respeito da contínua perseguição de homossexuais na Jamaica e nas comunidades jamaicanas em outros países. Relendo o texto, reconheço que não esclarece muita coisa, embora dê nomes aos bois e acrescente alguns títulos. Não lembro bem, mas a edição provavelmente truncou um pouco os parágrafos. De qualquer maneira, que se republique assim, sem remix, honrando a História.

Texto protegido por leis de copyright.
Para contatos com o(s) autor(es): bumbabeat@uol.com.br


SEXO, DROGAS E REGGAE'N'NROLL
Novos astros são politicamente incorretos - como seus antepassados

por Otávio Rodrigues

A bruxa está solta no circo do dancehall reggae! A síndrome do politicamente correto e as ativas brigadas de defesa das minorias descobriram que os ragga boys jamaicanos dizem cobras e lagartos de mulheres e homossexuais, que falam de armas como se estivessem falando de drogas e – para sacudir Bob Marley – festejam toda a glória de morar bem e passear por aí em carros de bacana.
Tudo começou com a explosão do single “Boom Bye Bye”, de Buju Banton, um sebostilhas de vinte anos. A música conta os detalhes comprometedores de um encontro homossexual: “Dois homens abaixam as calças e se abraçam e se deitam numa cama...”. Depois manda firme no refrão: “Atirem neles!”
The cow went to the swamp quando o sucesso ganhou os clubes e alguns hit parades de rádio nos EUA e Inglaterra. Como quase ninguém entende direito o “jamaiquês” desses meninos travessos, duas associações de Nova York – a GLAAD (Gay & Lesbian Alliance Against Defamation) e a GMAD (Gay Men of African Descendent) – mobilizaram a mídia brandindo nas mãos uma versão “decodificada” da letra da música. Deu no que deu.
Em Nova York, “Boom Bye Bye” acabou banida em duas FMs – WBLS e WRKS. O jornal The New York Post tratou do assunto em reportagem de capa. O Village Voice e a I-D também. Shabba Ranks, mito vivo da cultura raggamufin, comprou a polêmica: “Homossexualismo é uma doença, é um procedimento maligno. Porque Deus Todo-Poderoso, Ele mesmo confessa, odeia homossexuais. Na Jamaica, se um cara assim é encontrado em nossa comunidade, a gente apedreja ele até matar”.
Baixaria não é novidade na Jamaica, muito menos no reggae. O Caribe todo, aliás, é dado a certos exageros, a excessos passionais na religião, na política, no futebol, no romance (também temos coisas assim no Brasil). Calipso, zouk, rumba, beguine, soca e vários outros estilos da região, desde sempre pisam com os dois pés nas areias do machismo e da sacanagem.
Com o mento, bisavô do reggae, não foi diferente, e depois no ska, no rock steady. Mesmo nos anos 70 e 80, eras do saneamento básico instituído pelos rastas, a turma dos bad boys manteve-se feliz e altaneira com muito sexo, drogas e reggae’n’roll.
Como nas favelas de Kingston a Bíblia sempre se deu a leituras inesperadas e como os tambores e os bonecos de pano continuam funcionando por lá às sextas-feiras, boa parte dos jamaicanos acredita que os homossexuais – batty boys – são vampiros disfarçados.
As mulheres também não escapam: aquelas entendidas na Jamaica não passam de zami queens, espíritos do mal mandados por algum dos muitos feiticeiros que existem (obeah men).
É nesse sistema de crenças do crioulo doido que os bad boys da ilha são criados. E é exatamente isso que eles cantam em suas músicas, acionando um mercado que, só em Kingston, consegue lançar duzentos singles novos por semana. É um sucesso, até mesmo entre os homossexuais e as mulheres.
Mas os EUA não são a Jamaica. Os rapazes do ragga estão sendo pegos no pulo – como Jimmy Cliff no Brasil, perseguido pelas patrulhas feministas quando contou que tinha várias mulheres, a exemplo do que faziam seus antepassados e fazem ainda muitos de seus primos espalhados pela África.
Para muita gente, Shabba, Buju Banton e outros DJs de primeira linha, como Mad Cobra, Bunny General, papa San, Ninja Man, Super Cat, todos eles neste momento pagam um preço por serem negros e do Terceiro Mundo, e que atrás dessa cruzada moralizadora está um raciocínio do tipo “tudo bem, não podemos impedir que vocês tenham sucesso por aqui, mas façam o favor de antes pentear o cabelo e lavar a boca com sabão!”
Por essa, os batutas jamaicanos não esperavam: “Estão levando tudo isso muito a sério”, falou o tal do Buju Banton. “As músicas são apenas um reflexo do que é nossa cultura.”
Engraçado que mesmo Yellowman, machista célebre e falastrão, já há alguns pares de anos esculachava o homossexualismo em “Don’t Drop Yu Pants”, para citar apenas um de seus sucessos que tratava do assunto. Ninguém falou nada.
Mas nem só de Sodoma e Gomorra vive a terra do reggae. O DJ Nardo Ranks (aquele do “Burrup”) condenou o machismo explícito de Buju Banton em “Them a Bleach” e foi para as paradas. Um certo Crazy saiu em defesa do homossexualismo com “Take Ah Man”: se você não pode com uma mulher, pegue um homem...”
Yula, uma zami queen de Nova York, aproveitou a oportunidade de ser entrevistada pelo Village Voice e propôs a criação de uma “ordem rasta gay”, citando iniciativas similares entre católicos e judeus.
A polêmica vai continuar. Há gás suficiente para alimentar o estilo deixa-que-eu-chuto dos bad boys e também não faltam voluntários de livre opção sexual dispostos a encarar essa parada.
Os rastas, parece, preferem não se meter. Conta-se que alguns devotos da lendária Doze Tribos de Israel – a facção a que Bob Marley pertenceu – descobriram-se aptos para o vale-tudo na cama. E sobreviveram para admitir a experiência à boca-pequena. Está lá nas escrituras: “quem não tiver pecados que atire a primeira pedra”...

domingo, fevereiro 13, 2005

Reggae no Maranhão, Rasta etc.

Acho que pode ter alguma utilidade oferecer alguns textos aqui. São trabalhos publicados, não necessariamente ontem, mas como nem todo mundo fica sabendo que saiu, ou esquece de pegar a revista na banca, lá vai... Primeiro, um texto sobre o reggae no Maranhão, que ao final traz uma linha do tempo do gênero no Brasil (incompleta, é verdade, mas por questões de espaço; acredito que, cruzada com outras que já existem, dá um bom caldo). Saiu no volume 4 da História do Rock Brasileiro (Editora Abril). Depois, um abecê da religião rastafari, publicada na Revista das Religiões.
Vale dizer, este material está protegido por leis de copyright, portanto se você precisa publicá-lo, sob qualquer meio, em todo ou em parte, assim ou assado, é necessário fazer contato antes: bumbabeat@uol.com.br.)


Paredão de Som

por Otávio Rodrigues

Brilha a luz de João Carcará
Madre Deus das estrelas que tem fé
Itanatty, brincantes cazumbás
Brilha a estrela de Antonio José
Banda Guetos e a Tribo que é de Jah
Brilha a estrela que urrou no Pindaré


(“Luzes e Estrelas”, de Inaldo Bartolomeu, toada do Boi da Mocidade de Rosário, Maranhão, 1997)

Quarta-feira, 18 de setembro de 1996. O carro do Corpo de Bombeiros atravessou São Luís levando Antônio José Pinheiro Silva, o “Lobo”, morto um dia antes num acidente de carro. No longo trajeto entre o bairro de São Francisco e o Cemitério Jardim da Paz, no Maiobão, milhares de pessoas alinharam-se nas calçadas e acostamentos, acenando, gritando ou vertendo lágrimas. Antônio José não era coronel, deputado, ministro, jogador de futebol ou artista de TV. Era DJ de reggae, profissão pouco conhecida e nada nobre - mas isso apenas aos olhos da elite maranhense. Pra “massa regueira”, formada principalmente pelos excluídos, era um adeus emocionado e muito justo a um dos mais emblemáticos personagens do reggae do Maranhão.
Antônio José era um cara bacana, estava sempre de bem com a vida. Começara bem moleque tocando no Clube Quilombo, onde mexia com discos de vários gêneros, e não apenas reggae, o que decerto contribuiu na variedade instigante de suas seqüências. E foi ele um dos primeiros a encarar o público de frente, no momento em que os equipamentos de amplificação e controle passaram a ser colocados em mesas, e não mais nos móveis monolíticos, que forçavam os DJs a trabalharem de costas. Suas performances incluíam cantorias, refrões gostosos feitos no improviso e até scattings, à moda dos melhores da Jamaica. Uma de suas criações, “Menina Linda”, pontuada sobre música de Willie Lindo, será lançada agora pelo cantor maranhense Jorge Thadeu.
Naquela quarta-feira triste, quando o caixão do Lobo desceu à sepultura, coberto pelas bandeiras do Brasil e da Jamaica, salpicado por responsórios, fotos, camisas e outras lembranças atiradas por familiares, amigos e fãs, caía definitivamente a ficha de que o reggae no Maranhão era bem mais do que “coisa da negrada”, dos salões de periferia e clubes de chão batido. A massa regueira já havia dado prova de força elegendo um vereador. Mas ali, chorando sentida, mostrava que também era capaz de fazer um herói.

O início de tudo
Para entender o significado das homenagens a Antônio José é preciso voltar uns 20 anos no tempo, até o meio dos anos 70, quando esse jovem DJ ainda usava fraldas e o som da Jamaica começava a pegar no Maranhão. Naquela época, é bom lembrar, o reggae experimentava sua explosão na Inglaterra, não era cidadão do mundo como hoje. Bob Marley, por exemplo, trilhava o caminho das pedras e quase ninguém no Brasil sequer ouvira falar dele.
Acontece que na capital maranhense, assim como em cidades do interior, especialmente as da Baixada (junto ao litoral oeste do Estado) e as dos vales dos rios Itapecuru e Mearim, havia quem desde os anos 60 sintonizasse emissoras de rádio do Caribe. Outro fator importante foi a proximidade do porto de Belém, onde marinheiros e descascadores de batatas de toda parte do mundo alimentavam o comércio de LPs e compactos usados.
Foi no mercado do Ver-o-Peso, na capital paraense, em 1975, que o pioneiro Riba Macedo comprou seus primeiros discos de reggae. E então, com as jóias embaixo do braço, começou a aparecer nas festas dos amigos discotecários de São Luís (era assim que se chamavam os DJs), sempre tentando uma brecha entre um merengue, um som discoteque e um bolerão... “Ninguém gostava. Falavam pra mim: ‘Riba, larga de mão, isso é música de arraial!’.”
A partir de 1976, quando botou nas festas seu Sonzão Guarany - na época, como era comum, um sistema de som com apenas duas caixas e dois toca-discos -, Riba conseguiu espalhar o ritmo jamaicano e inspirar a primeira geração do reggae no Maranhão. Surgiram DJs, radioleiros (donos de radiola, como são chamados os sistemas de som), clubeiros (donos de clubes, os salões de dança) e colecionadores. “Eu tocava Jesse Green, Jimmy Cliff, Desmond Dekker, Toots [Hibbert, líder dos Maytals]. Quando aquele disco This is Reggae Music, o de capa amarela, apareceu no Maranhão, eu já tinha o meu faz tempo!” A cena que se desenvolveu a partir daí se baseou principalmente no gosto pelo ritmo. O batidão típico da música jamaicana, superamplificado e distribuído entre um número cada vez maior de caixas acústicas, seduziu a galera nos salões. Mas havia também a mística do reggae, já que os maranhenses identificavam-se com o jeitão dos jamaicanos nas capas de discos, com fotos da vida em favelas, a maconhagem, os problemas dos negros com a polícia... Ora, não é preciso estudar sociologia pra notar que a realidade de uns e outros é bem parecida.
Dez anos mais tarde, dezenas de clubes e radiolas chacoalhavam a ilha - tem essa ainda: São Luís, como a Jamaica, é uma ilha. O reggae tornara-se uma diversão boa e barata, oferecia bailes com luz negra e, delícia das delícias, a oportunidade de dançar junto, no chamego, à moda das “serestas” - os bolerões bregas, muito populares no Nordeste desde sempre.

Melô-banhô
Nos anos 80, emergiram os “intelectuais” do reggae. Entre eles, o paulista Fauzi Beydoun, hoje líder da Tribo de Jah, e Ademar Danilo, que graças à “massa regueira”, elegeu-se vereador em 1992, abrindo caminho para outros fazerem o mesmo (nas últimas eleições, José Eleonildo Soares, o Pinto da Itamaraty - a mais poderosa radiola do Maranhão - foi reeleito vereador com a maior votação de São Luís).
De 1984 e 1987, Fauzi e Ademar apresentaram juntos o programa Reggae Night, na Mirante FM. Com conhecimentos da cultura jamaicana, inglês na pinta e bem fornidas estantes de discos, a dupla deu uma injeção de conhecimento nos ouvintes, abriu os microfones para outros conhecedores, como os veteranos Zequinha Rasta e Viegas, e pavimentou o que seria o melhor período do reggae no Maranhão, que vai de 1985 a 1995. Foi a era da música de grandes como Jimmy Cliff, Gregory Isaacs, Max Romeo, U. Roy, Doctor Alimantado, Dennis Brown, John Holt, Big Youth, I Jah Man e Jacob Miller, sem falar em outros, menos conhecidos mas também brilhantes, como Eric Donaldson, Jimmy London, Lloyd Parks e Pat Kelly.
O grande decênio consagrou grandes radiolas, algumas com 80 caixas acústicas ou mais, formando paredões de notável efeito visual e sônico. Práticas comuns na Jamaica foram espontaneamente incorporadas, como a raspagem dos selos dos discos, para evitar a gana dos curiosos, e o confronto de radiolas em disputas que alcançavam o amanhecer. Sem falar no reggae de praia, precisamente o domingo no extinto Toque de Amor, na Ponta da Areia, um dos clubes mais queridos na categoria conhecida como “melô-banhô” - afinal, o mar está logo ali.
Clubes e programas de rádio popularizaram-se na mesma medida, ajudando a produzir personagens únicos. Por exemplo, os “traficante de discos”, que iam dez ou mais vezes pra Jamaica a cada ano em busca das “pedras” - o tipo de reggae que agrada à massa, necessariamente baixudo e bem marcado, e de preferência exclusivo, já que uma seqüência “destruidora” ou “avassaladora” podia, como pode até hoje, determinar o sucesso de uma radiola.
E se consagrou também nesse período a concorrência desleal entre algumas radiolas, os roubos de música e até os tiros na noite escura. Igual à Jamaica. Mas, como diziam os Mutantes, “posso perder minha mulher, minha mãe, desde que eu tenha o meu rock’n’roll”...

O sonho acabou?
Em 1995, o reggae já era um negócio extremamente lucrativo no Maranhão, o que fez crescer a barriga da maioria dos que já estavam no lance, bem como os olhos de empresários, promotores e radialistas que nada tinham a ver com a história. Os programas de rádio perderam o caráter informativo e cultural dos anos 80, tornando-se servis aos interesses de radioleiros e clubeiros. Na busca do santo graal da exclusividade e do lançamento de sucessos, muitas “pedras falsas” foram empurradas na goela dos regueiros.
Em 1996, uma loja de discos de São Luís começou a piratear as músicas de grande sucesso nas radiolas, lançando-as descarada e sistematicamente em coletâneas, sem pagar direitos aos autores ou editoras, mas cobrando preço de importado pelo CD. Isso colaborou para que alguns radioleiros passassem a procurar artistas do terceiro e quarto escalões do reggae, mas de relativa popularidade no Maranhão, como Honey Boy e Bill Campbell, com o propósito de fazer encomendas diretas de músicas. Até Joe Gibbs, famosíssimo produtor e dono de estúdio na Jamaica, entrou na dança.
Com tecladinhos meia-boca e uma boa percepção das batidas que andavam a agradar os maranhenses nos salões, artistas e produtores atenderam ao chamado e acabaram por criar uma nova linguagem para o reggae local, algo que nem de longe lembra os clássicos de outros tempos, nem resvala no reggae eletrônico de boa cepa. Em sonoro e castiço português, ficou difícil aturar as radiolas maranhenses nos dias de hoje.
Outro aspecto que conta muito para esse sucateamento estético é a atitude dos novos DJs. Contrariando a idéia de que as coisas na Jamaica Brasileira iriam seguir curso igual às da Jamaica Jamaicana, como sempre e naturalmente aconteceu, os donos do microfone não desenvolveram as técnicas nem o conteúdo de suas ladainhas - algo que na matriz, de tão bem resolvido e relevante, acabou gerando nada menos que o rap. Com slogans repetidos até o esgotamento e, às vezes, embromando no inglês sobre as músicas, essa turma não acenou, até agora, com sequer uma filigrana de mudança. A grande promessa aí, infelizmente, desceu à sepultura em setembro de 1996.

(linha do tempo)
Os Muitos Verões do Reggae

1969
No tempo em que se fumava cachorro com lingüiça, um jovem de 21 anos chamado Jimmy Cliff aparece no Brasil, defendendo a canção “Waterfall” no Festival Internacional da Canção. O jamaicano vai no programa do Chacrinha e grava um disco por aqui, Jimmy Cliff in Brazil (Philips), cantando até em português!

1972
Caetano Veloso compõe o reggae “Nine Out of Ten” em 1971, durante o exílio em Londres, e no ano seguinte a inclui no álbum Transa (Philips). Diz a letra: “Walk down Portobello road to the sound of reggae/I’m alive...”. Nesse mesmo ano, Luís Vagner e Paulo Diniz fazem parceria no primeiro reggae em português, “Bahia Comigo”, que aparece no LP Paulo Diniz (Odeon).

1979
Os baianos Jorge Alfredo e Chico Evangelista (ex-Arembepe, uma das primeiras bandas de reggae do Brasil) entram com “Reggae da Independência” no Festival da Tupi.

1980
Bob Marley vem ao Brasil. Joga bola, dá umas bolas, enche a cara de suco de frutas nas típicas lanchonetes do Rio... E se manda, sem cantar um “a”. Pouco depois, Peter Tosh faz um show histórico (e cheio de fumaça) no Palácio das Convenções, em São Paulo, durante o 2o. Festival Internacional de Jazz. Ainda nesse ano, Gilberto Gil e Jimmy Cliff excursionam pelo Brasil arrastando milhares de pessoas ao Mineirinho (Belo Horizonte), Estádio da Fonte Nova (Salvador), Geraldão (Recife), Maracanazinho (Rio) e Portuguesa (São Paulo).

1986
Os Paralamas, que já haviam apresentado o ska aos brasileiros em Cinema Mudo (1983) e O Passo do Lui (1984), aparecem com Selvagem? (EMI), um tesouro de gravões, porradas secas e efeitos dub. É referência até hoje. No mesmo ano, o guitarreiro Luís Vagner, um dos gurus do samba-rock, autor de “Camisa 10”, entre outros sucessos dos anos 70, lança o álbum Ao Vivo, ponto culminante de sua bem bolada fase reggae.

1987
O bloco afro Olodum lança Egito Madagascar (Warner), álbum seminal do samba-reggae, batidão criado pelo mestre Neguinho do Samba. Jimmy Cliff, Paul Simon, Bill Laswell e Michael Jackson, entre outros, pagam pra ver. “Pagam”, claro, é modo de falar.
1989
Os pancadões do dance hall reggae e do ragga explodem nos bailes blacks de São Paulo. O funk e o samba-rock, tradicionais no repertório de equipes como Zimbabwe, Chic Show, Black Mad, Dinamite e Circuit Power, ganham a companhia do reggae moderno de Shabba Ranks, Admiral Bailey, Frighty & Colonel Mite, J.C. Lodge e Cutty Ranks.

1990
Falar a Verdade, primeiro disco do Cidade Negra (CBS), ainda com Ras Bernardo nos vocais e produzido pelo baixista e dubman Nelson Meirelles, marca a entrada das bandas brasileiras de reggae nas grandes gravadoras. O disco toca com menos volume do que os convencionais, porque na hora do corte - etapa industrial do negócio - optou-se por privilegiar os graves. No mesmo ano, os Wailers de Bob Marley vêm pela primeira vez ao Brasil para uma série de shows memoráveis. O Circo Voador, no Rio, quase despenca.

1991
O cantor e compositor jamaicano Gregory Isaacs chega para o primeiro e histórico show em São Luís. Mas esquece a banda na Jamaica! Pra não frustrar a massa regueira que lota o Estádio Nhozinho Santos, acaba rolando um improviso com integrantes da Tribo de Jah e Universal Youth (da Guiana Inglesa), entre um e outro pot-pourri disparado pelo DJ Natty Naifson. Vinte dias depois, já com o visto vencido mas devendo um show na cidade, o cool ruler é protagonista de uma frustrada tentativa de fuga a bordo de um jatinho e vai parar na delegacia.

1998
Correndo por fora, longe das grandes gravadoras e sem tocar no rádio, a Tribo de Jah torna-se ícone dos fãs de reggae brasileiro. O sucesso dos maranhenses acaba semeando o surgimento de uma legião de bandas rastas de garagem, adeptas do lema “uma guitarra na mão e um baseado na cabeça”. Graças a Deus, há exceções. Entre os nomes dessa geração, destaque para o trabalho solo do baixista e compositor Edu Sattajah, do paulista Leões de Israel, Gérson da Conceição, baixista, cantor e compositor maranhense, fundador do já extinto Mano Bantu, e os mineiros do Manitu.

1999
O Cidade Negra põe na praça o psicodélico disco Dubs, com versões de suas músicas assinadas por Lee Scratch Perry, Augustus Pablo, Sly & Robbie e Mad Professor, entre outros monstros sagrados do dub.

2000
Surgem as primeiras dub sessions em São Paulo, dando o pontapé inicial na formação de uma cena de outsiders do reggae. Sem excesso de cores e boinas, a confraria mistura a cultura dos sound systems jamaicanos, piques de ragga, toques do dub europeu e ritmias brasileiras, que podem ir do funk carioca ao bumba-meu-boi. Nessa lista, DigitalDubs e Apavoramento (Rio), Lord Breu (Salvador), Léo Vidigal e Corpo Santo (Beagá), Yellow P, Dubversão e Bumba Beat (São Paulo), entre outros.

2002
Gilberto Gil vai pra Jamaica e grava Kaya N’Gan Daya quase todinho nos estúdios Tuff Gong, de Bob Marley, gilbertando vários clássicos do rei do reggae. Participam do disco as I-Threes (Rita Marley, Marcia Griffiths e Judy Mowatt) e a dupla Sly (bateria) & Robbie (baixo).

2004
Uma safra de bons nomes aponta para um futuro mais criativo no reggae brasileiro. No Rio, chamam atenção Reggae B. (banda alternativa de Bi Ribeiro, dos Paralamas), Gustavo “Black Alien” e Marcelinho da Lua (que acaba de lançar um disco com músicas tratadas pelo dubmaster Mad Professor). Em São Paulo, Vilson Dub (herdeira d’O Vaca de Pelúcia, pioneira no dance hall verde-amarelo), Firebug (produzida pelo festejado baixista norte-americano Victor Rice, que já tem namorada e apartamento em São Paulo) e Sapobanjo (combo de skazeiros da região do ABC, na Grande São Paulo).

Este texto sobre rastafari saiu em agosto de 2004 na Revista das Religiões, à época uma das "filhas" da Superinteressante. Para facilitar a vida dos que não tiveram acesso à publicação, aqui vai o original - ume pena, porque na revista as ilustrações e o mapa ficaram bem bons. Comentários, correções ou acréscimos relevantes são bem-vindos.

//\/\/\//////\/\/\\\\\/\/\///\/\/\  JAH LOVE

Misturando Bíblia, alimentação natural, música e ervas,a religião rastafari segue viagem espalhando-se pelo mundo


por Otávio Rodrigues

Há pouco mais de 200 anos, numa pequena e cênica colônia inglesa no Caribe - mas pequena mesmo, caberia dentro de Alagoas! -, os escravos descobriram a Bíblia. E depois de algumas leituras, muitos passaram a acreditar que sua história estava escrita ali, com todas as letras, no Antigo Testamento: o cativeiro, o trabalho de sol a sol, a perseguição, o sofrimento... Identificados com os judeus do Antigo Egito, passaram então a clamar pela volta para casa, África, que acreditavam ser a Terra Prometida. Mas essa é só uma parte da história...
          Hoje, vários descendentes daqueles escravos - estima-se que 10% da massiva população afro-descendente da Jamaica, que hoje é de pouco menos de 3 milhões de almas - continuam aguardando pelo grande êxodo. Seguidores do rastafari, ou rastafarianismo, eles acreditam poder preservar a saúde do corpo e do espírito com hábitos e alimentação naturais, evitam cortar o cabelo e a barba, e como sacramento usam marijuana (cannabis indica). E fazem tudo isso inspirados por preceitos bíblicos. Para completar o cenário de cores quase ficcionais, os rastas cultuam um imperador etíope do século XX - não como um guru, um santo ou mesmo um enviado de Deus, mas Ele mesmo!, em gloriosa encarnação terrena -, a quem chamam de “Jah” (corruptela de Jeovah).
           E antes que se embrulhe este breve resumo para ensaiar um entendimento, temos de acrescentar outro fator importante: a música. Porque num fenômeno sem precedentes na História, uma religião tem um pastor divulgando seu hinário nas paradas de sucesso de todo o mundo. Ou você nunca ouviu falar de Bob Marley?

Descobrindo a Jamaica
Tudo começa com Cristóvão Colombo chegando à Jamaica, em 1494. Ou logo depois, em 1509, com o primeiro navio negreiro. Ou na coroação de Hailé Selassié na Etiópia, em 1930. Enfim, há várias portas de entrada para o mistério do rastafari, e elas invariavelmente nos levam à Bíblia, misturando os capítulos.
          Parece bom chegarmos como Colombo, “descobrindo” a Jamaica. Com uma área de 10 991 km2, praias em todo seu entorno e uma cadeia de montanhas na porção interiorana, a ilha está a cerca de 100 quilômetros ao sul de Cuba - ou Hispaniola, como se dizia naquele tempo. Lugar quente, muito úmido, a Jamaica tinha vocação para o plantio da cana-de-açúcar. Era habitada pelos arauaques, ou o que sobrou deles depois das sanguinárias investidas dos índios caribes, famosos pelo apetite por carne humana. Não demorou para que os espanhóis desistissem de escravizá-los: para evitar a submissão, os arauaques preferiam jogar-se das encostas.
          Chega então o primeiro navio negreiro, e depois outro e outro, trazendo levas de africanos nos ferros, literalmente uns sobre os outros, entre ratos e escorpiões. Um genocídio. E para os sobreviventes, nos anos de chicote que se seguiam, as coisas, como sabemos, não melhoravam. Assim foi no Brasil, assim foi na Jamaica.
Quando os ingleses lá chegaram, em 1655, a ilha estava tão miserável quanto desprotegida - ninguém à época parecia interessado nela, a não ser os piratas, que a usavam como base e esconderijo. A esquadra britânica, com 38 galeões e cerca de 7 mil homens, na verdade pretendia invadir Hispaniola - mas esta sim, os espanhóis defendiam com unhas e dentes. Parece piada, mas os ingleses invadiram a Jamaica para não perder a viagem.

O grande terreiro
O estilo de exploração dos ingleses era avançar e construir igrejas. Não exatamente difundindo o cristianismo entre os escravos, mas para marcar posição. Assim, ao contrário do que ocorreu em grande parte das colônias espanholas e portuguesas, na Jamaica os negros tiveram certa liberdade de culto, já que não havia uma contrapartida forte da igreja católica, nem proibições austeras o bastante para calar o baticum. E isso, como vamos ver, vai fazer toda a diferença no século seguinte.
Porque em 1784, quando o ex-escravo George Liele fundou a primeira igreja batista na Jamaica, a ilha era um grande terreiro. Havia práticas ligadas à magia negra, como a dos obeah men, e também uma variante “do bem”, o myalism. Um dos ritos mais disseminados era a pukummina, que incluía possessões espirituais e toques de atabaques, como bem conhecemos no candomblé, na umbanda e outras religiões afro-brasileiras.
          Diferentemente dos pastores cristãos, Liele apresentou a Bíblia aos negros, agregando nos sermões alguns conhecimentos do Etiopianismo, uma corrente do cristianismo negro norte-americano que reconhece a África, em particular a Etiópia, como um dos berços da civilização cristã. Segundo essa doutrina, as pistas estão na Bíblia: "Príncipes vêm do Egito; a Etiópia corre a estender mãos cheias para Deus.” (Salmos 68:31)
          Logo, instaura-se na Jamaica o que viria a ser chamado de O Grande Revivalismo: o Velho Testamento é adotado nos cultos afro-jamaicanos e os mantras das senzalas adentram as igrejas batistas. Esse sincretismo, além de trazer uma necessária esperança ao povo jamaicano, vai alimentar as lutas libertárias que, entre outras conquistas, levam à abolição da escravatura, consolidada em 1838.
         Deste ponto, partimos para o início do século XX, onde um jovem negro, dono de muita iniciativa e excelente oratória, nos aguarda com mais surpresas...

Um mundo para os africanos
Marcus Mosiah Garvey nasce na baía de St. Ann, norte da Jamaica, em 1887. Aos 14 anos, larga a escola para trabalhar e ajudar a família. Depois, a bordo de navios mercantes, conhece países das américas Central e do Sul, trabalha em gráficas, adquire conhecimentos da prática jornalística, e então vai para Londres, onde permanece entre 1912 e 1914. É bastante provável que, nesse período, tenha tomado contato com as idéias de Booker T. Washington, educador e filósofo negro norte-americano, um dos principais semeadores da ascenção política e social dos afro-descendentes no século XX.
O fato é que, de volta à Jamaica, Garvey chega consciente de que o sofrimento e a falta de liberdade eram um desafio para negros de todo o mundo. Misturando passagens bíblicas com consciência negra - o que, como vimos, tornou-se bem próprio da cultura jamaicana -, num instante seus bordões dão várias vezes a volta na ilha, arrebanhando milhares de simpatizantes. Ele fala em “África para os africanos”. Em 1916, depois de ter fundado a UNIA, Universal Negro Improvement Association (Associação Universal para o Progresso Negro), Garvey muda-se para Nova York, estabelecendo-se no Harlem.
           Em dois meses, já conta com 1 500 seguidores. E em 1921, quando promove e lidera uma convenção internacional em prol da criação de um estado negro universal - líderes de 25 países tomam parte -, estima-se que 4 milhões de pessoas, em todo o mundo, contribuem ou simpatizam com suas idéias, dentre as quais chama atenção a da volta à África.
Com efeito, entre as várias associações, federações trabalhistas e empresas criadas por Marcus Garvey, está a Black Star Line, uma companhia de navegação que pretende realizar o grande êxodo. Claro, a elite americana, incluindo aí boa parte da intelectualidade negra, tratou de encontrar motivos para colocar Garvey atrás das grades.

A sagrada profecia
Em 1927, após dois anos de prisão, Garvey é deportado dos Estados Unidos. De volta à terra natal, ele logo está novamente liderando multidões, talhado que era para discursos firmes e extremamente convincentes. E é nesse momento que lapida uma frase profética, cuja força mudaria a história da Jamaica para sempre: “Olhem para a África. Quando um rei negro for coroado, a redenção estará próxima.”
          Três anos depois, em 1930, Ras Tafari Makkonen (1892-1975) é coroado imperador da Etiópia, adotando o nome Hailé Selassié I e alguns títulos à tradição da igreja cristã etíope: Rei dos Reis, Senhor dos Senhores, Leão Conquistador das Tribos de Judá... Na Jamaica, muita gente acorre à Bíblia e descobre passagens que, inegavelmente, coincidem com as do mundo aqui fora... “Tem no seu manto e na sua coxa um nome inscrito: Rei dos Reis e Senhor dos Senhores.” (Apocalipse 19:16). Para muitos, é a profecia se cumprindo: o redentor negro havia chegado para tirar do Egito os filhos de Israel. É nesse momento, portanto, que finalmente se consagra a religião rastafari. A começar pelo nome, tirado da certidão do imperador: Ras Tafari.
          A boa nova impregna de entusiasmo até os mais céticos, fazendo com que o movimento rastafari (eis um caso em que religião e luta social se confundem) granjeie adeptos em toda a Jamaica e também em outras ilhas do Caribe. Nos anos seguintes, surgiriam os “falsos profetas”, vendendo lugares em navios imaginários, assim como uma imensa fauna de delinqüentes e mercenários, capazes de deixar o cabelo crescer para se passarem por rastas, confundindo tanto suas vítimas quanto a polícia e a opinião pública. Mas que isso não pareça atenuante: por conta de sua aparência incomum e sua condição social, e talvez especialmente devido ao consumo da ganja (cannabis indica), entre outros hábitos um tanto fora de ritmo com os tempos modernos, os rastas continuariam marginalizados pela sociedade jamaicana.

Deliciosa propaganda
Falta então voltar a um elemento importante em toda essa história: a música. Porque a partir da década de 1960, a cultura rastafari seduz toda uma legião de rebeldes, entre eles os que criariam um dos mais importantes movimentos musicais de nossa era - o reggae. E é assim, através da música, e especialmente com a participação de um jovem chamado Robert Nesta Marley (1945-1981), que os rastas ganham o mundo.
          Você, é claro, já ouviu falar de Bob Marley. Mais que isso, é quase certo que conheça várias de suas músicas. Não é para menos: trata-se, segundo o New York Times, do “artista mais influente da segunda metade do século XX”. Uma de suas obras, o disco Exodus, que ele lançou em 1978, foi apontado pela BBC como “o melhor álbum do século”. No mundo inteiro, enfim, entre todas as classes sociais e etnias, esse jamaicano é muitíssimo cultuado como um símbolo de liberdade. Em sua terra natal, então, nem se fala. Mas entre seus iguais, adeptos da religião rastafari, Bob Marley não é apenas um grande artista: ele é também um mensageiro sagrado, responsável pela difusão dos preceitos rastas em todo o mundo. Graças a esse carismático garoto-propaganda que esse conjunto de crenças muito original e digamos, tão próprio do povo de um lugar, ecoou além lindas das praias caribenhas.

A divindade do imperador

Hailé Selassié I nasceu numa ilustre família etíope e foi, sem dúvida, preparado para se tornar um grande dignatário - condição que lhe permitiria, por exemplo, chefiar uma província, gozando dos privilégios garantidos pelo imperador. Mas também sem apelação, Selassié mostrou que possuía inteligência, carisma e habilidade política para ir muito mais longe. E foi.
          Aos 12 anos, comandava uma província. Depois, casou-se com uma das filhas do imperador Menelik II, aproximando-se ainda mais do poder. Aos 24 anos, tornou-se príncipe regente, tomando o lugar de um dos netos do imperador. Em 1923, conseguiu incluir a Etiópia na Liga das Nações. Finalmente, foi coroado em 1930, posição que manteve ao longo de 44 anos.
Selassié assinalou seu nome na história, primeiro defendendo heróicamente seu país durante a invasão das tropas de Mussolini, que ocorreu entre 1935 e 1941, depois nos movimentos pela unidade africana - uma luta que, que de certa forma, continua em curso.
          Então, a pergunta que não quer calar: Hailé Selassié era mesmo divino? Para a maioria dos etíopes, sim, já que ali, tradicionalmente, os imperadores eram tidos como confidentes de Deus. Mas esse entendimento nada tem a ver com a percepção dos jamaicanos, muito mais ousada e incisiva, que é a de acreditar que Selassié era Deus em pessoa. Nesse ponto, chegamos ao limite da discussão terrena - afinal, uma das virtudes da Bíblia, como sabemos, é permitir que façamos nela toda sorte de leituras e interpretações, tal como fazem os rastas, aplicados estudiosos as escrituras.
          Outra questão crucial: Selassié tinha conhecimento ou mesmo se aproveitava da condição divina que lhe foi atribuída pelos rastas? Sim, sabia, mas não dava a isso maior importância, nem sequer posou de Deus quando esteve na Jamaica, em 1966. Na ocasião, inclusive, resistiu a descer do avião quando vislumbrou a turba magnífica que naquele dia invadiu o aeroporto de Kingston, a capital jamaicana. E até que fosse deposto por um golpe, em 1974, não consta que tenha promovido “a retirada dos filhos de Israel das terras do Egito”.


(Legendas/Mapa)

1509
O primeiro navio negreiro chega à Jamaica, trazendo também a cultura africana de tribos como Fon, Akan, Yoruba e Ashanti, entre muitas outras

1916
Marcus Garvey muda-se para Nova York, onde funda diversas associações e empresas “de negros para negros”. Hoje, suas ações são comparadas às de Martin Luther King Jr. e Malcolm X

1927
De volta à Jamaica, Garvey anuncia a vinda de um messias negro, aquele que promoveria a volta dos negros expatriados à sua terra natal, como no êxodo descrito na Bíblia

1930
Hailé Selassié I é coroado na Etiópia, levando os rastas a acreditarem que a profecia havia se cumprido. Mas a viagem para a Terra Prometida nunca aconteceu

1945
Oprimidos pela miséria e desesperança, milhares de jamaicanos mudam-se para a Inglaterra, onde disseminam a religião rasta entre outras comunidades negras de todo o mundo


Mundo rasta

Maconha, cabelos grandes, alimentação natural, música... 
Para os rastas, está tudo na Bíblia

Maconha
A maconha é um sacramento, como a hóstia para os cristãos. Seu consumo, segundo a fé rasta, permite uma interação com Deus. Entre outras passagens: “E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície da toda a terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente: isso vos será para mantimento.” (Genesis, 1:27)

Cabelos
A tam (touca), nas cores da bandeira etíope, protegem as longas tranças. Há registros de que os jamaicanos tenham se inspirado em antigas imagens de guerreiros etíopes, que usavam a carapinha espetada. O mais comum, contudo, é citarem o livro sagrado: “Não cortareis o cabelo em redondo, nem danificareis as extremidades da barba” (Levítico, 19:20)

Música
Até 1930, não havia uma música rasta por excelência. Com a coroação de Selassié e a conseqüente proliferação de adeptos, os rastas naturalmente apropriaram-se de uma tradição rítmica chamada burru, ou nyahbinghi drums, comum nos campos e nas favelas jamaicanas. São esses tambores que, em 1960, misturam-se às orquestras emergentes, originando o ska - o avô do reggae. O propósito da música, como sempre, é inspirado pela Bíblia: “Cantai a Deus, salmodiai o seu nome; exaltai o que cavalga sobre as nuvens. Senhor é o seu nome, exultai diante dele.” (Salmos 68:4)

Comida
Os rastas ortodoxos não consomem carne, derivados de leite ou bebidas alcoólicas, entre vários outros produtos. Preferem viver próximos à natureza e em integração com ela: “Não comereis sangue em qualquer das vossas habitações, quer de aves, quer de gado. Toda pessoa que comer algum sangue será eliminada do seu povo.” (Levítico 7:26-27)

Adoração
Marcus Garvey é Moisés, um enviado de Deus, e Hailé Selassié é não outro senão o Próprio. Este é um dos dogmas mais controversos da fé rastafari e muitos seguidores hoje preferem relevar este aspecto. “Todavia, um dos anciãos me disse: Não chores; eis que o Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu para abrir o livro e os seus sete selos.” (Apocalipse 5:5)

Bíblia
“Um capítulo por dia”: essa é uma das máximas que rege o cotidiano rasta. De fato, seja nas letras das músicas ou mesmo num bate-papo, impossível não ouvirmos uma citação bíblica a cada 10 segundos

segunda-feira, dezembro 13, 2004

Carbono 14, a festa

Nesta sexta, dia 17, acontece mais uma festa Carbono 14, um lance do Jeffrey “Boto” e do Anderson Fornazari. A noite começa às 23h, com show do cantor, compositor e percussionista Dinho Nascimento. O Bumba Beat entra depois, com uma varada (ou long set, como se diz nos jornais e revistas do interior) de 2 horas! Na seqüência, a DJ Tati Sanches e o percussionista Tustão Cunha vão até o amanhecer com um de música eletrônica. Participam ainda o artista plástico Vincent Jean-Baptiste Guilmoto, o VJ Jacques Kaufmann e o cineasta Paulo César Soares (do combo BB). Há várias razões pra achar que a festa vai ser o bicho.

Estive no local neste sábado. Trata-se de um galpão na Av. dos Bandeirantes, próximo à Rua Funchal, daqueles que, de fora, ninguém dá nada. Lá dentro, porém, descobri que o lugar foi (bem) adaptado para eventos. O palco fica bem no centro, encimando um bar enorme. De frente, um mezanino de ponta à ponta, debruçado sobre a pista de dança - na verdade, duas, uma de cada lado do palco. O som é cabuloso, promete chinelada.

Pra mim, a oportunidade é emblemática, beira o místico. Eu explico. Em 1982, quando rolava o programa Roots Rock Reggae, na Excelsior FM (São Paulo), juntei forças com uma banda, procuramos um lugar legal, e juntos fizemos uma grande festa. Na época o reggae era muito, muito menos conhecido e prestigiado, e a noite teve ares meio contraculturais. Eu já fazia uns sons aqui e ali, mas esse foi, sem dúvida, o primeiro lance importante, num evento de certo porte.

É aí que entram as coincidências. O lugar, naquela ocasião, chamava-se Carbono 14 (o primeiro espaço multieventos de São Paulo e, talvez, do Brasil). E o show era do Arembepe, grupo que abriu boas frentes para o reggae por aqui, fundado por Chico Evangelista, Lima, Kiko Tupinambá e... Dinho Nascimento.

Bem, não espero que todos tenham as mesmas emoções que eu nesta sexta, mas que a noite promete, promete. Mais informações: www.ccatorze.com.br.

Copiai e multiplicai.

Baile do Baleiro estréia arrebentando

Na última quinta, dia 9, rolou no Direct TV (São Paulo) o primeiro Baile do Baleiro, concebido e organizado por Zeca Baleiro, como óbvio parece. Sensacional! Com uma superbanda, esquema de prima, o Bala reuniu atrações diversas e músicas de todos os tempos, todas as tendências - que tal Bocato tocando “Je t’Aime” pra uma stripper? O Bumba Beat participou no palco, com nosso poeta dub Celso Borges, e na pista, com Bruno ‘Kaskata’ Lancellotti e suas ska sessions de torcer as tripas. Teve ainda Moraes Moreira, Roger do Ultraje, Cyber Macumba, video-performance de Tadeu Jungle, mímica de Gílson César... A idéia e fazer uma todo mês. Se depender do sucesso da estréia, está garantido. Mais informações: http://www2.uol.com.br/zecabaleiro/

Quem é vivo sempre aparece

O blog andou meio abandonado, é verdade, mas vamos melhorar.
Mais novidade na seqüência

doc

terça-feira, novembro 09, 2004

Valeu a pena

Valeu a pena. Gostaria de começar assim, antes de outros comentários. Porque a oportunidade no TIM Festival trouxe um crescimento enorme pra gente - e creio que aqui entra também a percepção do DigitalDubs. Pra fazer jus ao grande evento, trabalhamos duro, chegamos junto e fizemos bonito. O público, da mesma maneira, estava de gala, uma vibe muito boa.

Uma pena, porém, que as condições técnicas não permitiram que a festa fosse ainda mais bacana. Pelo que soube depois, já que no palco não se tem noção do que rola lá fora, é que, no caso do Bumba Beat, em boa parte do set os microfones não funcionaram, não se ouviam as vozes, ou o trombone, ou a percussão...

A Dueto Produções, responsável pelo TIM, alega ter um contrato com o Jockey determinando que os shows não devem avançar além das 6h. Infelizmente, pagamos pelo atraso geral de uma série de shows que começou - ou deveria ter começado, não sei - às 21h30 (Picassos Falsos, PJ Harvey, Primal Scream). Assim, as pessoas que chegaram pra assistir à balada da 1h, só puderam entrar às 3h ou mais! Consta também - está ganhando linguagem de boletim - que a tropa de segurança varreu a galera assim que acenderam as luzes... O tipo da coisa que deixa qualquer um indignado.

Faço questão de registrar tudo isso aqui, porque o mico foi grande, revoltou muita gente. Mas, conforme disse no começo, valeu a pena. Eu também ficaria muito mais satisfeito em poder passar o som antes (como deve ser e como os gringos do festival fizeram) e tocar mais cedo, num espaço menor e mais "quente", se possível ao rés do chão, perto do público, com tudo funcionando. E adoraria ter tocado o set até o fim - "Bumba meu Dub", a música que fizemos com o Zeca Baleiro, por exemplo, continua inédita...

O tipo de projeção que o festival nos deu é boa, as reportagens foram positivas, trataram de toda a cena em muitas oportunidades. Acho que todo mundo sai ganhando. Estou solidário com os que saíram insatisfeitos, chateado com os atrapalhos técnicos de um festival desse porte, mas não tenho como esconder minha alegria pela oportunidade.

Aproveito pra agradecer a todos que participaram diretamente de nossa festa. Celso Borges (o dub poet brasileiro), Bidu Cordeiro (trombones do além), Luiz Cláudio Farias (percussão dos terreiros e templos), Buguinha (live dub cósmico e PA sideral), Paulo César Soares (delírios e cenas no telão), Bruno Lancellotti (DJ, imprensa, produção etc. etc.), Kamille Viola (imprensa, Rio), Maria Cláudia Baima (produção e workshop de paciência), Daniela Rodrigues (cenografia, figurino, luz, carinho), Marcelo “Cabrera” Bragatto (cenografia e cervejinha), Caroline Bittencourt (fotógrafa oficial do BB), Tadeu Banzatto (design do blog e outras alegrias), Aden Santos e Daniel Lanchinho (masterização das bases), Zeca Baleiro e Paulo Lepetit (vozes do Zeca), Simone Soul (instrumentos de primeira), Nelson Meirelles e o combo do DigitalDubs (ensinanças e amizade pra toda vida), Ricardo Martins e Antônio Carlos Castro (scanners e entusiasmo a qualquer momento), Hermano Vianna (a antena mais ligada do Brasil), os manos e minas do dubbrasil (a lista quente do dub brasileiro) e todos que, de um jeito ou de outro, estavam nessa com a gente. Obrigado a todos, love...

quarta-feira, novembro 03, 2004

A noite jamaicana do TIM Festival

Dia 6 de novembro, no palco Motomix, STONE LOVE (Kingston)
e os brasileiros BUMBA BEAT e DIGITAL DUBS representam
a cultura dos sound systems jamaicanos

O interesse no Brasil pela música jamaicana é crescente. Além do reggae, o estilo mais conhecido por aqui (embora não em todas as suas variações), o ska, o rock steady, o dub e outras vertentes dos sons da Jamaica – inclusive os ecos na música eletrônica internacional – têm conquistado cada vez mais espaço. Prova disso é a escalação de dois expoentes nacionais do gênero para a noite de 6 de novembro no TIM Festival, ao lado de um artista consagrado da própria ilha. O rapper niteroiense De Leve faz a ponte entre o rap e o ragga.O Bumba Beat é herdeiro e continuador de vários outros projetos ligados à música e à cultura Brasil-Jamaica. Suas origens estão no final dos anos 70, quando Doc Reggae (Otávio Rodrigues) começou suas atividades como jornalista, radialista e DJ. No TIM Festival, ele toca suas próprias produções, que incluem versões de clássicos da música jamaicana, além de composições inéditas, que misturam reggae e derivados com bumba-meu-boi, tambor de crioula, samba e outros batuques brasileiros e afro-caribenhos. Doc Reggae (bases, voz, percussão) divide o palco com um timaço que inclui percussão, trombone e dub poetry - que é o som à moda dos mestres Linton Kwesi Johnson e Mutabaruka, que declamam sobre as bases.

Estão no combo do Bumba Beat Luiz Cláudio Farias, percussionista paraense radicado desde os anos 70 no Maranhão, presença nos trabalhos de Nelson Ayres, Zeca Baleiro, Ceumar, Naná Vasconcellos, Rita Ribeiro e longa lista; Bidu Cordeiro, carioca, trombonista dos Paralamas e Reggae B; Celso Borges, poeta maranhense, abrindo o verbo; Buguinha, dubmaster pernambucano, engenheiro dos Racionais, Nação Zumbi e Arto Lindsay, entr'outros, que cuidará do PA e live dub; e Zeca Baleiro, que gravou suas vozes em estúdio especialmente para esta apresentação.

O Digitaldubs Sound System é uma equipe de som especializada no dub e no reggae em todas as suas possibilidades. Seu estilo é uma mistura que vai dos tradicionais Lee Perry e King Tubby até os eletrônicos Zion Train e Bill Laswell. O crew, formado pelos selectors Nelson Meirelles (baixista, ex-O Rappa, ex-Cidade Negra), MPC, Cristiano Dubmaster e Kuke, lança mão de um arsenal cuidadosamente garimpado, com versões alternativas para clássicos do reggae, jóias desconhecidas do gênero, grooves tradicionais e temperos eletrônicos que incluem ragga, jungle, downtempo e afins. Na apresentação no TIM, o Digital vai tocar apenas criações próprias, com Nelson atacando no baixo em algumas delas, além das participações especiais dos MCs Lápide e Biguli, e do percussionista Junior Ramos, que também vai tocar escaleta em uma música.

Criado em 1972, o Stone Love Sound System é um dos mais respeitados sound systems jamaicanos. A idéia partiu de Winston “WeePow” Powell. Desde então, desenhou som e atitude que esquentam a chapa na Jamaica, criando e propagando tendências em bailes que ganharam até mesmo o patrocínio da cervejaria irlandesa Guinness. Além de WeePow , outros selectors integram o Stone Love, como Rory, G-Fuzz, Jet Lee, Bill Cosby, Billy Slaugther e Nico. São eles que mostrarão ao TIM Festival como rola o bailão com a pegada jamaicana: reggae, dancehall, ragga e, às vezes, popozões balançando.